quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Requeijão tem preço, a orquídea, apreço.



“Oh! a delícia dificílima de ser inútil.
Os homens dividem-se em dois grandes grupos:
os que levam para casa, de tarde,
um requeijão de 8$000, e os que levam uma
orquídea de 8$000...”
(Guilherme de Almeida)

                                                                                                                FotoJRToffanetto

Op. 129
se dentro de si
tire o papel da bala
na boca do mundo
(JRToffanetto)

Muito antes do homem e seu processo de evolução até a escrita, ou da poesia transformada em confete à mesa do requeijão, os vegetais, na lentidão dos tempos, vieram trabalhando sua essência evolutiva voltada para o equilíbrio e a harmonia, razão de sua permanência diante das perturbadoras mudanças geológicas, cataclismos, males e nocividades de toda ordem. Foram da química orgânica à maturidade dos frutos e sementes. Uma das mais simples formas de vida terrena, finalmente, chegara ao topo dos seus ciclos ascensionais. Criara algo em tudo diferente de si própria, tanto na forma como nas cores, temperatura, olores, sistema reprodutivo, néctar... Prosperara seu poema de fé. Alcançara a perfeição. Desabrochara a beleza imortal – ars longa. Chegaram as flores – vita brevis (A arte é longa; a vida, breve – provérbio latino).

Com eles, o planeta verde nunca mais foi o mesmo. De sutileza semelhante ao arco-íris do céu, a Terra vestiu-se com cores e formas engenhosas, sobretudo elegantes. Perfumou-se de pureza. Abriu-se a delicadeza de sua essência íntima. Irradiou beleza e poética harmonia como evidência da sutileza do espírito da bem-aventurança, equilibrada e generosa. Promovida a natureza do belo, também surgiram outras formas de vida mais apuradas que as da era mesozóica, como os inocentes pássaros, as delicadas borboletas... A Terra despertou um outro mundo. À beleza das flores, o planeta ganhou exuberância paradisíaca.

Faltava uma criatura indispensavelmente sensível para dar sentido e paixão a tão divinas providências... O espírito divino, finalmente, doara-se a um seguimento das espécimes dos primatas, o qual, assim como as flores, destinava-se a despertar a beleza espiritual em harmonia com o meio e evolucionar às alturas da sua origem: as estrelas. Ao sentir a Grandeza da Grandiosidade, o homem dobrou seus joelhos ao chão, manifestando, através deste gesto poético, que se punha à disposição daquele sentir de dentro que se expandia ao redor.

Todavia, ao dominar o meio, os primeiros poetas-homem foram-se julgando senhor dele. Cuidando das flores daquele planeta, esqueceram-se da poesia que cantava dentro de si próprios. Ocupavam-se, agora, em fazer requeijão, pois a sua inteligência o criara cozinhando o leite misturado à coalhada, e tanto o cozinhou, tanto andou de baixo pra cima com o tal requeijão debaixo do braço, que não só perdeu o olfato como as demais sensibilidades além das dos cinco sentidos. Alegavam falta de tempo para tocarem a mágica lira que desabrochava a beleza neles latente. Seus botões velados foram esquecidos, e as próprias flores foram se tornando abstratas demais para eles. Chegava a verdade da longa noite escura. No alvor da criação benfazeja, passou a ver o seu próprio crepúsculo. O breu mental se instalou.

Mas nem todos se ocupavam apenas do requeijão e, de tanto cultivarem a rosa, chegaram às orquídeas. Por aí compreende-se sua beleza rara, mesmo naqueles tempos. Pois a turma do requeijão nelas encontrou um novo negócio. A sua lira caiu no la-lira-lai, depois vieram os pagodeiros. Entraram no mercado editorial dos poetas da rosa. São estes os atuais poetas do apocalipse.

                                                                Lírio
Ainda hoje é muito fácil ser poeta da primavera da humanidade! Como no princípio, tudo está escrito nas pétalas das flores, é só lhes dar nome. São os mesmos poemas eternos. Lírio é o nome dado pelos poetas-homem, ao poema da pureza no meio do lodo. Tulipa para a poesia da simplicidade, a propósito, ô poeminha difícil de ser encontrado, mas na falta destes, não faltam os poemas-margarida, verso a verso, pétala a pétala. Os poemas-maria-sem-vergonha também são assim, só precisam de um pouco de luz direta do sol e muita água. Flor-de-cacto ao canto da delicadeza entre aridez e espinhos, mas estes são poemas que só podem ser declamados com a alma lavada por olhos úmidos. Onze-horas foi o nome dado para o canto da fé, o encanto do doce mistério, do desabrochar da delicadeza sob sol do dia luz.

                                    Flor de abóbora
Um dos poemas mais lindos e animados é o da flor-de-abóbora que, rente ao chão, canta a natureza dadivosa. Trata-se de um copioso poema que o poeta-homem já não o visita mais. Uma lenda contada pelos poetas mais antigos dizia que chegaria o dia em que somente as borboletas, o espírito das flores, conheceriam aquele poema por inteiro. É verdade, está escrito nas asas delas, mas não é visto por olhos comuns, e a ciência, apenas hoje, constata que está em luz ultravioleta, embora não saiba o que. Só os poetas do fogo (espírito) e da água (sentimento) o conseguem traduzir, é que estão compactados na forma de haicais cujas imagens variam ao sabor do mesmo néctar em cada flor ao pouso lepidóptero.

Oh! a delícia dificílima de ser inútil. Não é sem razão que os poetas são conhecidos como caçadores de borboletas, o que não se sabe é que toda a humanidade é caçada por elas a pousar em seu coração. São as borboletas que, pela Bondade, pousam no seio dela, lá aonde mora o poeta-homem. Arte dificílima, sim, mas sem esforço. Então o Homem sente a reza poética versificada, ora como orquídea selvagem, ora como crisântemos, ora como simples copos-de-leite. São poemas borboletas, que os poetas, cuidadosa e artisticamente espetam com seus bicos da pena nas páginas de livros inúteis como todos os livros são, e tão inúteis que "grandes sábios", em todos os tempos, neles foram beber acreditando-se fonte. Poetas da rosa é rosa, da orquídea é orquídea, do lírio é lírio... são chafarizes, apenas chafarizes desta filosofia. Por Bondade, o que jorra nos seus poemas é fluido sideral, ou tão somente quando o poeta torna-se a poesia que pousou dentro, que veio cantar dentro de si. A borboleta, um pássaro azul...

Nenhum outro poema é mais longo que o da vitória-régia, tão exuberante quanto a selva amazônica em sua solidão. Uma lenda indígena, que se perdeu no tempo, conta que seu final é surpreendentemente mágico, e que custava uma vida chegar-se até a sua última estrofe, quando, então, o poeta transformavam-se em tucanos. A utilidade daqueles pássaros era tanta para a comunidade “indígena” daqueles tempos à beira do Solimões que seus poetas trabalhavam integralmente sobre aquela flor majestosa. Os demais poetas-homem cuidavam de não lhes deixar faltar requeijão.

Finalmente, as orquídeas. Poemas de rara beleza que se perderam das vistas poéticas. Estão salvos, em segredo, no fundo da alma humana. Cada indivíduo, “com” ou “sem” o sentimento do belo, latente ou à flor da pele. Poetas homem, desde os primaveris, tem licença poética para  revelar o segredo da orquídea. É que nas funduras da alma humana, tem lá um vídeo que conta tudo. Fala de uma rosa que nasce no coração. Ela, a rosa, é o botão de sintonia, um “dial” em vertical que passa por todas as flores até chegar às orquídeas, e que apenas é sintonizado, acionado aos que souberem tocar naquele botão de rosa do coração. Poetas homem são apóstolo da beleza. Sendo apóstolo é que se retirar a rosa de dentro do  peito, do contrário se machucará com espinhos, isto é, ainda não.

Não sabem que o botão ainda encontra-se velado, não sabe quando se dará o desabrocho. A Bondade o colherá livre da dor para que o poeta-homem possa colocá-lo na mão do outro, do amigo, do desconhecido, e de todo aquele que necessita de um gesto de amor com a sabedoria da rosa que só desabrocha livre dos espinhos. Poema espírito do amor verdadeiro é pura doação.

Nem o coração, nem as rosas são nossos, são pertences da Bondade, assim como o sentimento do belo, a pureza gentil, os gestos poéticos. É preciso voar na luz, leve como uma borboleta, para beber do néctar da Bondade preparado no jardim do Poeta Maior. Entretanto, muitos preferem ficar voando como moscas mortas sobre o requeijão vencido.

Se pomo-nos em movimento até à completude em natureza divina, transubstanciar-nos-emos em rara beleza. já não mais saberemos se sonhas com esta flor rara ou ela que sonha o poeta homem. Caminharemos no Jardim da Harmonia, dos sabores, do saber em néctar. Todos nós sabemos no que um requeijão se transubstancia pouco além do estômago. Só proteínas!

Visto do firmamento, a beleza rara do nosso planeta é que sua humanidade pode chegar à excelência das orquídeas. Todo o Universo está atrás desta flor. Já teríamos virado pó das estrelas se esta poética não fosse cultivada em muitos corações. A rosa é o poema de todos nós, o tamanho do homem é a chave para todas as flores.

Uma récita absoluta diz que, quando o último terráqueo receber em suas mãos o derradeiro botão de rosa, e que esta desabroche em suas mãos, então ele também poderá retirar semelhante botão do seu coração, e como na Terra não  haverá mais ninguém para ser ofertada, o Poeta Maior a receberá, e a humanidade terá cumprido seu propósito. Seremos um poema do saber, vitórias-régias por extenso, delicados haicais como os beija-flores, poemas luz como os girassóis e, nas estrelas do céu, estaremos fundidos em versos do Poeta Maior. A humanidade, assim como a infinita espécie de orquídeas, será a mais nova e bela obra de arte do Universo, tão real quanto pão e vinho. Dificílimo? Pode parecer inútil, mas todo o Cosmo espera por isto.

Jairo Ramos Toffanetto

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