domingo, 20 de fevereiro de 2011

Minha doença sem cura


Op. 301

"Outono"

No degrau da porta,

aviso de inverno inscrito

numa folha morta

©


       Depois de cumprimentar o Dr. Madureira, fui para a balança e ele me fez a costumeira pergunta que sempre nos rendeu uma rápida, boa e descontraída conversa:
       - Você está escrevendo, Jairo?
       Respondi notificando-lhe o meu peso:
       - Setenta e nove quilos, doutor.
       Este fato ocorreu no outono, ano passado. Vale dizer que uma vez por ano eu passo neste consultório para saber o resultado de um exame que pode revelar a presença do vírus da Hepatite “C”.

(Imagem extraída da internet e por mim reeditada para esta postagem.)

       Ia sentando-me à sua frente quando ele, com os meus exames sobre a mesa, comunicou-me o que eu já esperava:
       - Jairo, exame negativado pela terceira vez. Num total de cinco, tudo indica que você está curado.
       Virou-se para o computador e, atualizando meus dados, perguntou-me se eu ainda estava escrevendo. Dei-lhe a resposta descontraída de sempre, afinal, o que menos desejo é tomar o tempo de um médico umuno-infectologista que faz um trabalho tão bonito quanto vital para a vida de seus pacientes.
       - Doutor, escrever é a minha doença para a qual não procuro cura.
       Desta vez ele não sorriu. Sentindo-o merecedor de eu avançar na resposta, e também por respeito, acrescentei:
       - No que você cantou meu número de chamada, uma folha de outono caíra na soleira da porta dos fundos. Um haicai à espera de composição ficou lá, largado, envenenando-me o espírito. Compô-lo é uma forma de eu reverenciar aquele movimento da natureza e, para mim, através do incidente, atender a natureza do meu espírito, ou seja, dar forma à integração ali ocorrida através de imagens poéticas.
       Ele havia terminado de inserir meus novos dados em seu compudador, os quais também lhe dá elementos para estatísticas. Virou-se para mim e permaneceu olhando-me em silêncio. Continuei a lhe falar
       - Assim como as pessoas procuram sentir o cheiro de uma flor através da imagem que lhes abrem os sentidos, com o haicai, as imagens que cada um pode criar para além da escrita está à semelhança da flor. Sentir o aroma da flor é trazer a essência dela para dentro, no haicai, o estado de beleza criado co-partícipe.
       Depois de ele me marcar mais um exame, lembro-me de me despedir assim:
       - Esta é a minha doença: puro contágio, doutor.
       Na sala de espera compus o haicai acima escrito, e seguindo a forma literária deixada por Guilherme de Almeida *. Agora, em três de março, tenho consulta marcada com ele às sete horas da manhâ, e quando lhe levarei o haicai então composto.

* Veja a fórmula:
http://www.terebess.hu/english/haiku/almeida.html



Jairo Ramos Toffanetto

Um comentário:

Unknown disse...

Caro Jairo, muitas vezes a cura dos "doentes" não está obrigatoriamente em curar a doença, mas sim dar um alento para saude, resplandecer para vida, dar um pouquinho de calor humano, afetividade e atenção à aqueles que padecem de alguma doença infecciosa muitas vezes estimatizante. Felizmente a Hepatite C tem cura. Você é prova cabal deste avanço médico. Tenho muitas saudades da Medicina do passado, sou um eterno romântico,onde o paciente não era mais um no boleto do convênio, do INPS, dos raios que o parta, era uma relaçao de confianca, confidência e de amizade.
Sinceramente.
Dr. Madureira, carinhosamente chamado de MADU pelos paeientes.