quarta-feira, 28 de julho de 2010

"Da fábula aos contos de fada"

“...através da poesia perpassa a pureza e, por causa dela,
parecem-nos lindas e encantadoras as crianças”
Jacob e Wilhelm Grimm


O poeta tem uma cigarra dentro do peito.
Para aquela cigarra o verão é permanente.

A popular motivação cruel e irônica para com a vida cotidiana logrou, com Esopo (séc. VI a.C), o primeiro conjunto de fábulas de que se tem notícia. Destas, “A Cigarra e a Formiga” é, nos dias de hoje, a mais conhecida que já se escreveu, rivalizando-se, inclusive, com os mais famosos contos de fada.

Exposta às intempéries, com fome e frio, a Cigarra vai à casa da Formiga à procura de abrigo. Dizendo que cantara durante o verão, é despachada pela insensível e impudica Formiga que sentencia “Pois agora, dance!” Sob este epíteto à desumanidade, a Cigarra é julgada, sentenciada e executada como um súbito e lancinante golpe de sabre.

Dissequemos esta Formiga e não encontraremos sentimentos que a identifiquem com o ser humano em seu estado de eu natural, bom e compassivo. Com o material ideologismo dominando sua consciência, acabou por extraviar qualquer sentimento de nobreza, incluído o da partilha em consideração ao bem comum. Escapou-lhe o significado da vida, fugiu-lhe o espírito da dimensão humanística, faltaram-lhe, enfim, qualidades do espírito e da alma, sobrando insensibilidade, desrespeito, falta de compaixão para com a infelicidade do próximo. No depender da Formiga e seu modo de vida estático, as Cigarras já estariam extintas desde o início dos tempos. Quanto à Cigarra, possivelmente, só bateu à porta da casa da outra por alguma situação que lhe fugira ao controle. Vejamos, porém, o que aconteceu logo após aquela sinistra frase esopina:

As perninhas da Cigarra amoleceram ao ouvir aquilo, dobraram-se como num cadafalso, gerando um balanço do seu corpo que a virou de barriga para cima, atraindo a atenção da Formiga e sua ninhada. Comeram-na viva, como petisco, pelas beiradas, pedacinho a pedacinho. Acima das impiedosas cortadeiras sob a boca voraz, a Formiga pôde ver, afinal, a Cigarra “dançar”.

Do infortúnio da Cigarra, muitos podem conferir a lição do custo da imprevidência. Só os doentes psicossociais, profundamente egoístas, alinham-se com a Formiga. Mas em se pensar que tal fábula possa ser útil para uma criança é não saber nada do amor como pureza de expressão do belo, a quintessência da vida humana a ser salvaguardada.

A criança, afinal, precisa de idéias para acreditar que vencerá. Só com esperança ela pode, quando chegar a hora, ir à luta, conquistar a sua autovalorização, a sua identidade e, por fim, vencer para ser feliz. Fosse a Cigarra um exemplo disto, a fábula teria se transformado num conto de fadas.

Porque não lhe diz respeito, a criança jamais se identificará com a Formiga. Para ela, a Cigarra esopina não morreu, porque se assim fosse, ela morreria junto. Quais cigarras, muitas delas estão a chamar do lado de fora da porta de dentro de seus lares, das suas escolas, dos seus livros, encontrando apenas o vazio, o frio da solidão, do isolamento. Nestes lugares, não há espaço para sentimentos íntimos, vazão da alma, o pulsar vivo do coração, porque vivem em lugares apertados, escuros e úmidos onde pouco ou nada se vê. Ainda que alguns destes tentem abrir janelas para um pouco mais de luz, é preciso que se retire o olho eletrônico que mais espia (em distorção) do que acolhe, inclinados que estão a transmitir pensamento adulto para criança porque, eles próprios, adultos, foram criados assim, com uma consciência não integrada ao grande milagre da existência. É preciso um pouco de mágica para fazer isto. A mágica do amor. Por que acabar com o punhado desta mágica que as crianças ainda trazem à flor da pele?

É como fazem com a citada fábula de Esopo e, pior, usando-a como atrativo de venda de livros embrulhados como literatura infantil, como uma conhecida autora de livros infantis teve a infelicidade de fazer. Não convém olharmos melhor o que chega às mãos de nossas crianças como literatura infantil e, do mesmo modo, em relação a música, filmes, modismos ou, pelo menos, trazer um pouco mais de luz para a vida da criança em contraponto com o aberrante e desvirtuado mundo do consumismo em seu significado do prazer para já? É esta a Cigarra esopina?

Quarenta ou cinqüenta anos atrás, a criança brasileira tinha a consistente e profícua referência de um Monteiro Lobato que contava histórias para os corações das crianças. Recebíamo-las com a emoção de quem recebe um presente de amor. Assim, “Narizinho” era mais popular que os personagens da Disneylândia ou tão famosa como a encantadora “Chapeuzinho Vermelho”.

Com extrema delicadeza, ele contou para o nosso mundo interior que as personagens daquela fábula eram européias, onde o frio é deveras castigador, impossibilitando, por prolongados períodos, a vida comunitária. “A cigarra e as formiguinhas” do seu conto, estas sim, figuras saudavelmente tropicais, cujo amor e amizade estava na base dos relacionamentos. Pena que aqueles são tempos que se foram, pois os usos e costumes da vida moderna estão fazendo com que cada um viva só para si mesmo. Entrementes, quando, na história de Lobato, a cigarra é incomodada pelo vento sul, a doce formiguinha abre a porta de sua casa e se apressa em convidá-la a entrar, e o faz com honras meritórias a artistas.

A nossa formiguinha era emocionalmente evoluída, tocada pelo sentimento do belo, pois teve a virtude de transformar a aflição da cigarra em um bem, tanto para aquela quanto para o formigueiro que, em acolhimento a ela, transformara-se em festa. Comprazer-se em fazer o bem é, deste modo, uma delícia. Depois desta primeira formiguinha, as mal-amadas que viessem, logo seriam reconhecidas pelas crianças e ainda que intentassem invadir seus jardins, saberiam preservar o mundo do seu coração.

Lobato também teve o cuidado de aludir que cigarras são os poetas, os músicos, os pintores, pois ele próprio era uma cigarra, uma cigarra que compreendia muito bem a separação entre pensamento adulto para criança e imaginação infantil. Porque era um artista de verdade – uma formiga com alma de cigarra (ou vice-versa), idealista, portanto –, soube fazer a necessária integração daqueles personagens ao mundo infantil. Pena que seu conto sofreu, popularmente, sérias distorções.

A Cigarra, comportando-se de modo subserviente, bem ao gosto da soberania absoluta da Formiga, convence-a da importância do canto e, assim, é acolhida. A Formiga, inflexível por dois mil e seiscentos anos, deixa-se enrolar por um subterfúgio pouco convincente e mesmo piegas. Ela que nunca fez diferença entre mato ou jardim para derrubar, pôde, então, reconhecer o belo através de uma expressão artística para a qual, até o último verão, não tivera ouvidos ou coração para sentir.

Salvo Lobato, a tal fábula e demais adaptações grosseiras não se prestam para crianças. Particularmente, acredito naquilo que participa na regeneração da humanidade, onde qualidades universais são exaltadas. A fábula de Esopo desce o ser humano ao mundo dos desafetos e, especialmente para as crianças, um prejuízo de alto custo para o futuro. Os “Três Porquinhos”, “João e o pé de feijão” e outros contos de fada fazem melhor do que a citada fábula de Esopo, mas isto já é uma outra história.

Resta dizer que Sócrates via na educação “A arte de despertar as virtudes da alma”. Ensinar é sinônimo de dar (pode ser troca), e educar é, sobretudo, uma questão de generosidade. Nesta arte, os habilitados são os que amam, ou de que outro modo é possível despertar na criança a firme e habitual disposição para o bem? Só através da magia do amor é possível despertar tais virtudes, como a tolerância, o respeito, a benevolência, a amizade, a responsabilidade, a paciência, a humildade... Dar às crianças lições politicamente corretas - à moda moral de hoje - é coisa da Formiga. Ajudá-la a encontrar e percorrer os significados da vida é bem diferente. Certamente, a mais difícil e importante tarefa que um pai pode oferecer na criação de um filho, ou lição de classe da mais difícil realização para um professor. Será mesmo que queremos o desabrochar de uma sociedade mais fraterna e civilizada? Se assim é, voltemo-nos, pois, à poética da vida.

“(...) compreensão, amor, gentileza, a não agressividade, a humildade...
Essas são as armas do bem.” Dr. Celso Charuri 

Jairo Ramos Toffanetto
(Imagens extraídas da Internet)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Quintanares

Às oito horas da manhã:

- Que pena... ela não está... preciso tanto falar com ela...
Algo transtornava a amiga. Perguntei-lhe:
- Posso ser útil em alguma coisa?
- Não não, você está saindo pro trabalho, vou te atrapalhar.
Deixando-lhe um livro de Mário Quintana, recomendei:
- Seja lá o que for, esqueça. Apenas leia o livro.
E completei:
- Hoje, só à noite a Regina estará em casa.
A amiga não apareceu, nem telefonou. 
Dias depois,
a Regina deixa o livro de Quintana ao meu lado e sai me dizendo:
- Apenas abra o livro.


Na contra-capa encontrei o seguinte bilhete:
“Jairo,
os poemas de Quintana
foi o que eu mais estava precisando naquele momento. 
Obrigada”.
Bradei:
“Viva a poesia! Viva Mario Quintana””.
A Regina veio me abraçar.

Assim como os poemas do Mário...
Ah se este Blog puder quintanar

Eis um dos quintanares do poeta M. Quintana:

“Os Poemas"

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não tem pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti.”


Em tempo:
Quintanares são prosas ou versos, mas sempre poesia.

Jairo Ramos Toffanetto

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Maria Regina

     O poema imagético que se segue expressa o sentimento que me acompanhou desde o momento em que a Regina chegou com esta sedução mágica nas mãos. Vejam a foto:


A mulher e a flor,
por tanta delicadeza assim...
o belo decorre

    Ficamos em franca admiração à flor, afinal, nunca tínhamos visto nada igual. Só depois é que lhe perguntei o nome da preciosidade e aonde a encontrara.

    - Estava numa calçada de esquina entre a Av. Fernando Arens com a Rua Major Lacerda, respondeu-me ela. Não sei o nome mas, pela aparência - ela se referia a tamanho, forma, robustez das pétalas... -, vê se adivinha da onde ela vem.

    - Na calçada... ah, só pode ser de uma árvore, respondi-lhe.

    - Então venha comigo pra eu te mostrar a árvore.



     Na foto abaixo, a Regina me ajuda procurar na árvore um ângulo de foto mais interno e voltado para a luz. Se na foto já dá vontade de abraçar a árvore, estar à frente dela é uma experiência única


     O ângulo adivinhado foi encontrado. Ei-lo:


     A Regina e eu ainda não descobrimos o nome da flor, mas o sobrenome dela só pode ser a árvore. Enquanto nome e sobrenome, poderia ser poeticamente denominada como "Sedução (a flor) Mágica (a árvore)", no entanto, pela divindade da natureza, e em nome da delicadeza, batizo esta árvore específica pelo nome de "Maria Regina".

Jairo Ramos Toffanetto

A Regina sob a Maria Regina, ontem, 24 de julho.


sábado, 17 de julho de 2010

Poema Imagético

                                                  Poema imagético 

(Opus 160, n. 2)

Ao sol descoberta
a manhã boceja cores
de Poesia Luz

    Em 2004, a Regina (postagem de 24 de junho de 2010) sugeriu que eu escrevesse à mão o que chamo de poemas imagéticos (haicais) sobre aquarela em papel cartão - sobre uma festa de cores - para comercializá-los em época de Natal e também para a passagem de ano, pois as pessoas poderiam dedicá-los à alguém escrevendo sobre a própria aquarela, ou mais extensamente no verso.

    Fiz centenas de aquarelas, e só depois é que fui separar os poemas a serem nelas escritos. Alguns deles se repetiram em diferentes aquarelas. Poemas e aquarelas são obras (opus) distintas uma da outra, mas, às vezes, se casam tão perfeitamente que sinto saltarem para outro nível de experimento.

    Por todo o processo me senti atuando no desconhecido. Busco incansavelmente o belo, e quase sempre é ele quem me encontra. Em uma ou outra aquarela intervi ao digitalizá-las, seja no recorte ou  no uso de ferramentas do editor de imagens.

    A escrita (não o poema imagético) sobre aquarela dá um formato que remete à apreciação estética. É quando, no bater de olhos, a pessoa sabe se gostou ou não, só depois é que vem a composição poética, o haicai propriamente dito, a aquarela, ou seja, o incursionar pela obra. Portanto, ao transcrever o poema sobre aquarela, foi como fazê-lo com pincel, isto é, me percorria o sentimento de não os estar escrevendo, mas pintando. Oras, não é com pincéis que os poetas japoneses compõe haicais!?

    Enfim, o haicai desta postagem é o centésimo sexagésimo da ordem de contagem, e pertence a um conjunto de sete poemas imagéticos num total de vinte e um versos e que estarão na íntegra em postagem que há de vir.

Nota: Tais poemas imagéticos foram expostos no Shopping Paineiras Center.

Jairo Ramos Toffanetto

Cheirinho de Feijão

                          Desenho de Yung Gautama Toffanetto aos nove anos de idade  

       Porque o céu está nebuloso... vento indiscreto, frio e úmido, juntando folhas secas junto a uma pedra fria... ruas vazias, sombras ausentes, tudo cinzento, cores sem brilho... cães ladrando abandono e loucura... carros passando em cortejo fúnebre...
       Posso compreender os que dizem ser um dia triste e feio só para puxar assunto entre desconhecidos, mas perguntar o que acho só para confirmar suas impressões... ah... o dia e sua poética integravam-se tão divinamente a mim no sentir de um cheiro de feijão que ficava fora de questão emitir qualquer juízo de gosto.
       - Vocês estão sentindo um cheirinho de feijão? Perguntei-lhes.
       - Tudo cheira morto no dia de hoje. Disse um deles em tom terminante.
       Vendo um menino correndo pelo meio da rua qual feijãozinho puxando uma capucheta em piruetas às suas costas, disse ao que pusera uma trava à minha sinalização para a poesia:
       - É mesmo! Diga isto prô menino da capucheta.
       Um outro, possivelmente livrando a cara daquele que cheirava a morto, ajuntou dizendo:
       - Hoje tá bão mesmo pra tomá umas pinga, isso sim!
       Esquecendo a rodinha dos falazes, fique a admirar o menino que, certamente atraído pelo cheiro de feijão, parara à frente do portão aberto da sua casa onde enrolava numa lata a linha de sua capucheta.

Jairo Ramos Toffanetto


sexta-feira, 9 de julho de 2010

Boca da Noite

“Boca da noite”
foi como poetas lá da roça
chamaram a transição crepuscular
seguida pelo canto dos sapos.
Valsinhas brasileiras tem muito
deste gosto do belo em anfíbia melancolia.
Príncipes e princesas saem do charco como lírios.
É preciso muito trabalho interior
para conquistar o reino de si mesmo ou...
Vivas ao Sapo-Rei e a Dona Preguiça!
Vivemos em tempo do despertar,
em tempo de acelerar a evolução.
O berço é esplêndido.
O caminho é longo e macio, mas...
criamos o calçado por causa dos espinhos.
A meia-noite não é escura, é blue.

Jairo Ramos Toffanetto

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Maísbela


       Se o Brasil imperial era menino, Jundiaí não passava de uma menina humilde e mirradinha, apagada como a Gata Borralheira e, como nos contos de fadas, prestes a por seus generosos dotes de beleza para fora. Sua carruagem mágica chegou por trilhos da São Paulo Railroad, mas isto é outra história. 

       O estigma de “feia”, dado por viajantes que no século XIX passavam por aqui, permaneceu até a década de setenta do século passado. Um pecado contra a singeleza da mocinha, estúpido arranhão em sua maciez. Hoje, não longe de completar quatrocentos anos desde que Petronilha Antunes e seu novo marido por aqui chegaram instalando uma nova cidade, pode ser vista, apesar de sua natureza simples, como sofisticada mulher, daí a singularidade de sua beleza.

       Fazem cinqüenta anos que por Maísbela percorro suas curvas ao longo cinzeladas por cascos do burro e rodas de carroça em contorno de torsos serranos. Não me canso de admirá-la, pois são inesgotáveis os contrastes urbanos com períodos de tempo e natureza. A poesia que evoca de súbitas vistas criam estados de pura magia. Em Maísbela você mal acaba de se despedir de um mix de formosura para a reencontrar de uma esquina a outra. Um poema paisagístico que nunca pára de surpreender. É só ter olhos para ver.
Jairo Ramos Toffanetto


(As fotos desta postagem foram tiradas por JRToffanetto)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Poetas que fazem versos para pentear macaco

O poeta é como pescador, pesca se tem peixe ou... paciência.
Poetas surdos à gritaria dos peixes usam anzóis, são terríveis.
Mau poeta só puxa sapato velho do fundo do lago.
Poeta com aguardente em beira de rio é pinguço.
Os que jogam a rede cheiram a peixe.
Quanto a mim, faço como os meninos de antigamente:
vou bater peneira no córgo.
O que pego deixo em bacia com água.
Se não der uma boa pratada, despejo a bacia, volto amanhã.
Isto dá certo porque sempre pesco pra todo mundo.

Jairo RamosToffanetto

quinta-feira, 1 de julho de 2010

“O Dragão de Jorge"

 





      Era um monstro de verdade, o pior dos dragões. Diferentemente dos seus pares que se alimentavam das misérias humanas, não perdia oportunidade para pôr suas garras nos mais belos sonhos dos seres humanos, arrastando-os para a sua caverna onde os admirava, eternamente. Ainda bem que era assim, pois haviam pessoas que, piores que dragão, eram incorrigíveis espicaçadores de sonhos.
      Na maioria das vezes, outros dragões concorriam para que sonhos ficassem a esmo. Era quando o dragão dos sonhos entrava na história. Todavia, havia sonhadores teimosos o bastante para concretizarem sonhos ainda que ameaçados por dragões de toda ordem.
      A maior parte do tempo passava nessa caverna, quietinho, deliciando-se com todos aqueles sonhos maravilhosos. Mantinha-os protegidos de aventureiros que os queriam trazer para a realidade comum. Tratava-se de sonhos raros, preciosos e lindos demais para serem deixados ali, sozinhos.
     Ruminava... Bastara aquela vez em que dera uma escapadinha da caverna, e um guerreiro, cujo nome era Jorge, surpreendera-o e combatera-o até a Lua. Depois fizeram do homem um santo, idolatraram-no de modo que ninguém mais precisava repetir a façanha. Fizera coisa de santo, só pra santo, é o que as pessoas engoliam. Passado o tempo, embora o culto permanecesse, pouco se sabia do santo guerreiro e menos ainda do tal dragão. Garantia-se, assim, a continuação daquela sorte.
    As lendas contam que os dragões eram criaturas mágicas que nunca deixavam de aparecer para as pessoas, e que, como o antigo santo guerreiro demonstrara, deveria ser permanentemente combatido. Até a Lua imortalizou o combate, exibindo-o exemplarmente nas noites de lua cheia.
    Mas o nosso dragão andava preocupado. A humanidade cada vez menos se dedicava a sonhos nobres. Por outro lado, os sonhos ruins, grandes ou pequenos pesadelos, realizavam-se cada vez mais à luz do dia. Por isto, perambulava desiludido dos sonhos das pessoas, saudoso dos tempos heróicos, à cata de migalhas, nesgas de bons sonhos, muito estressado, morbo, meio magro, e tão fraco que o fogo que soltava da boca limitava-se a uma inofensiva chispa.
    Este dragão que tinha para si, e somente para si, as mais sublimes sinfonias jamais postas em partituras, os mais belos poemas que nunca foram para o papel, belas artes que jamais ganharam cores da vida, entendia, afinal, um pouco de sensibilidade sonhadora. Gradualmente fora tornando-se diferente dos dragões de todos os tempos, incapazes de qualquer sentimento sonhador. Entretanto, como era dragão, nunca deixava de aproveitar circunstâncias favoráveis para voar nos sonhos das pessoas.
    Muita coisa mudara nos últimos três séculos, inclusive ele, pois vinha ruminando a possibilidade de ter os seus próprios sonhos. O dragão da nossa história começava aprender a pensar, e do pensar para o sonhar obrado na realidade prática bastava um pequeno voo. Tratava-se de um voo diferente, como o dos humanos, no sentir(-se).
    O mundo de dragões já estava ficando pequeno demais para ele. Pequenos, médios e grandes dragões, de todos os tipos, inclusive virtuais, não paravam de surgir, especialmente na passagem do século XX para o XXI. Reproduziam-se em massa. Havia mais dragões que gente de bem naquele planeta. Dragões desavergonhados nem se davam ao trabalho de se esconderem para não serem vistos à luz do dia.
    O dragão da violência verbal, por exemplo, era normalmente aceito pelas pessoas comuns, e estas últimas, depois de terem as orelhas torradas e comidas, também iam aprendendo a ser dragão. Acabavam tomando gosto por isso, e mais monstruosas elas se iam tornando. O plano era que não subsistisse um único pavilhão auditivo só porque haviam perdido o deles. Pessoas mais inteligentes, ou menos dispostas a brigar com dragão, driblavam-no com falsas bandagens nas orelhas, como a indicar recente iniciação deles na família draconiana.



     O da vaidade pessoal sempre foi o mais ativo. Antigamente eram dragões mais refinados, de conversa envolvente mas, agora, o vocabulário limitava-se ao falar das posses e das mais tolas mazelas do dia-a-dia draconiano. Eram os dragões que mais gostavam de se pronunciar. Era gozado ver dragão passeando de carro, fazendo compras em lojas de estilo, jantando em restaurantes franceses. O difícil era esconder o rabo ou evitar os desastres causados por ele.
     Mas havia os que absolutamente não sonhavam, como os dragões de língua comprida com espinho venenoso na ponta, sempre passando a limpo a vida dos outros. Não passavam de inofensivas lagartixas à cata de moscas mortas. Só se agigantavam a dragão para comportar o tamanho da língua.
     Os não menos inofensivos eram os dragões rasteiros como cobras que gostavam de nivelar tudo por baixo simplesmente porque não sonhavam mais que um palmo na frente do nariz. Por não poderem ver na luz do dia, muitos eram mais minhoca que dragão, vivendo em buracos escuros e se alimentando de microorganismos.
     Eram incontáveis espécimens deles, todos hediondos, de crescimento desmedido, inflacionários, grassando perigosamente na sociedade humana, e quase sempre com uma titica no cérebro cujo cheiro atraía os mais encarniçados comedores de miolos. Centenas de organizações se formavam para denunciar e combater esses monstros, mas politicamente não se podia esperar que dragão resolvesse problema de dragão.
    Assim via as coisas. Cada vez mais, ia tomando consciência do quanto ele e seus consortes eram medonhos. Começou a sentir pena de si mesmo por não passar de um dragão de casca grossa, desajeitado e barrigudo, meio acorcundado e morbo, com rabo de serpente, asas de morcego, olho de jacaré, cabeça de bater sola, bafo de jibóia, e soltando fumaça preta pelas ventas. Mas, sobretudo, pena pelo embrutecimento generalizado da humanidade sonhadora, embora sempre capaz dos pequenos aos grandes gestos poéticos que ele próprio tanto esbulhara. Pela primeira vez, sentiu necessidade de fazer alguma coisa por ela a começar por si mesmo.
     Finalmente, tirou para fora da caverna todos os sonhos que guardava como tesouros inestimáveis e os devolveu à humanidade. Interessava-se em vê-los realizados. Mas ela não reconhecia aqueles sonhos como seus. Desejava sonhos novos e mirabolantes, cheios de efeitos especiais, tipo o filme do Godzilla ou Homens de Preto. Mesmo os ainda teimosos sonhadores, embora os recebessem de bom grado e tivessem tomado providências para torná-los um patrimônio da humanidade, pareciam ocupados em outro tipo de sonho que nenhum dragão poderia suspeitar. Quanto ao nosso dragão, sem caverna para o proteger, preparava-se para dar o segundo passo, um voo pelo desconhecido.
     Todos os dragões eram seres mágicos. Uns soltavam fogo pela boca e fumaça pelo nariz. Outros lançavam raios pelos olhos. Havia aqueles que voavam, e também aqueles que destruíam tudo com o rabo. Dragões descomunalmente grandes como aquele que até hoje se pode ver desenhado no mapa-mundi. Mas não cabe aqui relacionar ou descrever todos eles.
     Originalmente eram príncipes que, um dia, não souberam transformar seus belos sonhos em realidade e, aos poucos, foram deixando de lutar. Foram se transformando em monstros e, quanto maiores se tornavam, menos se lembravam de sua condição original.
     Talvez o nosso dragão tenha sido o primeiro dos grandes dragões mágicos que sonhou retomar a sua condição natural de príncipe. Foi como ser humano, e não outro simulacro de si, que saiu da caverna. De volta à origem, jurou que jamais permitiria tornar-se novamente dragão.
     Ao olhar para o primeiro espelho que encontrou, pensou ver São Jorge nele. Se não era São Jorge, pelo menos cara de santo ele tinha e com um certo sentimento de respeito por algo maior que ele, uma felicidade a ser ordenada e, um dia, compartilhada e expandida. Até já podia sentir o gosto de sonho.
     Descobriu que tinha um sonho, seu. Sonhou lutar contra os abjetos draconianos. Somente santos, príncipes, guerreiros e teimosos sonhavam assim.
     Então, uma bela princesa passou à sua frente. Ficou magicamente encantado e, mais, gostou de ouvir e sentir o sonho dela. Casaram-se e tiveram muitos dragõezinhos. Não não, a história desta vez seria contada de acordo com a verdade, sem final de efeito. Afinal ele era príncipe, casara-se com uma princesa igualmente ou mais sonhadora que ele, seus filhos eram príncipes, e príncipes que sonhavam diferente dos sonhadores de espíritos tacanhos.
     Seu sonho, aparentemente simples, sem defeitos, inacessível a dragões aboletadores de sonho, constituía-se em propiciar, todo santo dia, condições favoráveis para que seus filhos jamais viessem, algum dia, a se tornarem dragões. Esse foi um sonho encontrado para lutar contra os dragões, as potestades do mundo inferior.
     Não virou santo por isso, mas que levou muitos dragões igualmente cansados da sua sina, a seguirem o caminho de um sonho maior, levou, ah levou. Afinal, quem é que não queria ser o príncipe forte e valente de sua própria história.
     Até o fim da vida – terminou como rei -, jamais deixou de realizar os seus sonhos, incontáveis. Talvez um dos maiores sonhadores da humanidade. Antes de morrer, deixou instruções para que fosse inscrito na sua lápide um trocadilho com o verbete popular que dizia “de homem e bicho todo mundo tem um pouco”. O que se inscreveu foi “quem não luta pelos seus sonhos é mais bicho que homem”.
    
* Sob o pseudônimo de "Ribeirinho do Guapeva", este conto foi o vencedor do “6º Concurso Literário” promovido pela “Fundação Cultural de Canoas”(RS).


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A Poesia está

A poesia está, é o Todo.
O homem sai da natureza,
esquece-na.
Um dia sente a Poesia
vindo cantar dentro.
Larga os versos,
segue os passos
do Poeta Maior,
segue reintegrando-se,
infinitamente.

Jairo Ramos Toffanetto
Poeta, escritor e leader training corporativo