quinta-feira, 1 de julho de 2010

“O Dragão de Jorge"

 





      Era um monstro de verdade, o pior dos dragões. Diferentemente dos seus pares que se alimentavam das misérias humanas, não perdia oportunidade para pôr suas garras nos mais belos sonhos dos seres humanos, arrastando-os para a sua caverna onde os admirava, eternamente. Ainda bem que era assim, pois haviam pessoas que, piores que dragão, eram incorrigíveis espicaçadores de sonhos.
      Na maioria das vezes, outros dragões concorriam para que sonhos ficassem a esmo. Era quando o dragão dos sonhos entrava na história. Todavia, havia sonhadores teimosos o bastante para concretizarem sonhos ainda que ameaçados por dragões de toda ordem.
      A maior parte do tempo passava nessa caverna, quietinho, deliciando-se com todos aqueles sonhos maravilhosos. Mantinha-os protegidos de aventureiros que os queriam trazer para a realidade comum. Tratava-se de sonhos raros, preciosos e lindos demais para serem deixados ali, sozinhos.
     Ruminava... Bastara aquela vez em que dera uma escapadinha da caverna, e um guerreiro, cujo nome era Jorge, surpreendera-o e combatera-o até a Lua. Depois fizeram do homem um santo, idolatraram-no de modo que ninguém mais precisava repetir a façanha. Fizera coisa de santo, só pra santo, é o que as pessoas engoliam. Passado o tempo, embora o culto permanecesse, pouco se sabia do santo guerreiro e menos ainda do tal dragão. Garantia-se, assim, a continuação daquela sorte.
    As lendas contam que os dragões eram criaturas mágicas que nunca deixavam de aparecer para as pessoas, e que, como o antigo santo guerreiro demonstrara, deveria ser permanentemente combatido. Até a Lua imortalizou o combate, exibindo-o exemplarmente nas noites de lua cheia.
    Mas o nosso dragão andava preocupado. A humanidade cada vez menos se dedicava a sonhos nobres. Por outro lado, os sonhos ruins, grandes ou pequenos pesadelos, realizavam-se cada vez mais à luz do dia. Por isto, perambulava desiludido dos sonhos das pessoas, saudoso dos tempos heróicos, à cata de migalhas, nesgas de bons sonhos, muito estressado, morbo, meio magro, e tão fraco que o fogo que soltava da boca limitava-se a uma inofensiva chispa.
    Este dragão que tinha para si, e somente para si, as mais sublimes sinfonias jamais postas em partituras, os mais belos poemas que nunca foram para o papel, belas artes que jamais ganharam cores da vida, entendia, afinal, um pouco de sensibilidade sonhadora. Gradualmente fora tornando-se diferente dos dragões de todos os tempos, incapazes de qualquer sentimento sonhador. Entretanto, como era dragão, nunca deixava de aproveitar circunstâncias favoráveis para voar nos sonhos das pessoas.
    Muita coisa mudara nos últimos três séculos, inclusive ele, pois vinha ruminando a possibilidade de ter os seus próprios sonhos. O dragão da nossa história começava aprender a pensar, e do pensar para o sonhar obrado na realidade prática bastava um pequeno voo. Tratava-se de um voo diferente, como o dos humanos, no sentir(-se).
    O mundo de dragões já estava ficando pequeno demais para ele. Pequenos, médios e grandes dragões, de todos os tipos, inclusive virtuais, não paravam de surgir, especialmente na passagem do século XX para o XXI. Reproduziam-se em massa. Havia mais dragões que gente de bem naquele planeta. Dragões desavergonhados nem se davam ao trabalho de se esconderem para não serem vistos à luz do dia.
    O dragão da violência verbal, por exemplo, era normalmente aceito pelas pessoas comuns, e estas últimas, depois de terem as orelhas torradas e comidas, também iam aprendendo a ser dragão. Acabavam tomando gosto por isso, e mais monstruosas elas se iam tornando. O plano era que não subsistisse um único pavilhão auditivo só porque haviam perdido o deles. Pessoas mais inteligentes, ou menos dispostas a brigar com dragão, driblavam-no com falsas bandagens nas orelhas, como a indicar recente iniciação deles na família draconiana.



     O da vaidade pessoal sempre foi o mais ativo. Antigamente eram dragões mais refinados, de conversa envolvente mas, agora, o vocabulário limitava-se ao falar das posses e das mais tolas mazelas do dia-a-dia draconiano. Eram os dragões que mais gostavam de se pronunciar. Era gozado ver dragão passeando de carro, fazendo compras em lojas de estilo, jantando em restaurantes franceses. O difícil era esconder o rabo ou evitar os desastres causados por ele.
     Mas havia os que absolutamente não sonhavam, como os dragões de língua comprida com espinho venenoso na ponta, sempre passando a limpo a vida dos outros. Não passavam de inofensivas lagartixas à cata de moscas mortas. Só se agigantavam a dragão para comportar o tamanho da língua.
     Os não menos inofensivos eram os dragões rasteiros como cobras que gostavam de nivelar tudo por baixo simplesmente porque não sonhavam mais que um palmo na frente do nariz. Por não poderem ver na luz do dia, muitos eram mais minhoca que dragão, vivendo em buracos escuros e se alimentando de microorganismos.
     Eram incontáveis espécimens deles, todos hediondos, de crescimento desmedido, inflacionários, grassando perigosamente na sociedade humana, e quase sempre com uma titica no cérebro cujo cheiro atraía os mais encarniçados comedores de miolos. Centenas de organizações se formavam para denunciar e combater esses monstros, mas politicamente não se podia esperar que dragão resolvesse problema de dragão.
    Assim via as coisas. Cada vez mais, ia tomando consciência do quanto ele e seus consortes eram medonhos. Começou a sentir pena de si mesmo por não passar de um dragão de casca grossa, desajeitado e barrigudo, meio acorcundado e morbo, com rabo de serpente, asas de morcego, olho de jacaré, cabeça de bater sola, bafo de jibóia, e soltando fumaça preta pelas ventas. Mas, sobretudo, pena pelo embrutecimento generalizado da humanidade sonhadora, embora sempre capaz dos pequenos aos grandes gestos poéticos que ele próprio tanto esbulhara. Pela primeira vez, sentiu necessidade de fazer alguma coisa por ela a começar por si mesmo.
     Finalmente, tirou para fora da caverna todos os sonhos que guardava como tesouros inestimáveis e os devolveu à humanidade. Interessava-se em vê-los realizados. Mas ela não reconhecia aqueles sonhos como seus. Desejava sonhos novos e mirabolantes, cheios de efeitos especiais, tipo o filme do Godzilla ou Homens de Preto. Mesmo os ainda teimosos sonhadores, embora os recebessem de bom grado e tivessem tomado providências para torná-los um patrimônio da humanidade, pareciam ocupados em outro tipo de sonho que nenhum dragão poderia suspeitar. Quanto ao nosso dragão, sem caverna para o proteger, preparava-se para dar o segundo passo, um voo pelo desconhecido.
     Todos os dragões eram seres mágicos. Uns soltavam fogo pela boca e fumaça pelo nariz. Outros lançavam raios pelos olhos. Havia aqueles que voavam, e também aqueles que destruíam tudo com o rabo. Dragões descomunalmente grandes como aquele que até hoje se pode ver desenhado no mapa-mundi. Mas não cabe aqui relacionar ou descrever todos eles.
     Originalmente eram príncipes que, um dia, não souberam transformar seus belos sonhos em realidade e, aos poucos, foram deixando de lutar. Foram se transformando em monstros e, quanto maiores se tornavam, menos se lembravam de sua condição original.
     Talvez o nosso dragão tenha sido o primeiro dos grandes dragões mágicos que sonhou retomar a sua condição natural de príncipe. Foi como ser humano, e não outro simulacro de si, que saiu da caverna. De volta à origem, jurou que jamais permitiria tornar-se novamente dragão.
     Ao olhar para o primeiro espelho que encontrou, pensou ver São Jorge nele. Se não era São Jorge, pelo menos cara de santo ele tinha e com um certo sentimento de respeito por algo maior que ele, uma felicidade a ser ordenada e, um dia, compartilhada e expandida. Até já podia sentir o gosto de sonho.
     Descobriu que tinha um sonho, seu. Sonhou lutar contra os abjetos draconianos. Somente santos, príncipes, guerreiros e teimosos sonhavam assim.
     Então, uma bela princesa passou à sua frente. Ficou magicamente encantado e, mais, gostou de ouvir e sentir o sonho dela. Casaram-se e tiveram muitos dragõezinhos. Não não, a história desta vez seria contada de acordo com a verdade, sem final de efeito. Afinal ele era príncipe, casara-se com uma princesa igualmente ou mais sonhadora que ele, seus filhos eram príncipes, e príncipes que sonhavam diferente dos sonhadores de espíritos tacanhos.
     Seu sonho, aparentemente simples, sem defeitos, inacessível a dragões aboletadores de sonho, constituía-se em propiciar, todo santo dia, condições favoráveis para que seus filhos jamais viessem, algum dia, a se tornarem dragões. Esse foi um sonho encontrado para lutar contra os dragões, as potestades do mundo inferior.
     Não virou santo por isso, mas que levou muitos dragões igualmente cansados da sua sina, a seguirem o caminho de um sonho maior, levou, ah levou. Afinal, quem é que não queria ser o príncipe forte e valente de sua própria história.
     Até o fim da vida – terminou como rei -, jamais deixou de realizar os seus sonhos, incontáveis. Talvez um dos maiores sonhadores da humanidade. Antes de morrer, deixou instruções para que fosse inscrito na sua lápide um trocadilho com o verbete popular que dizia “de homem e bicho todo mundo tem um pouco”. O que se inscreveu foi “quem não luta pelos seus sonhos é mais bicho que homem”.
    
* Sob o pseudônimo de "Ribeirinho do Guapeva", este conto foi o vencedor do “6º Concurso Literário” promovido pela “Fundação Cultural de Canoas”(RS).


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Um comentário:

Marcel disse...

Obrigado amigo por dividir tão agradável conto e por ter a iniciativa de abrir este espaço.
Grande abraço !