quarta-feira, 28 de julho de 2010

"Da fábula aos contos de fada"

“...através da poesia perpassa a pureza e, por causa dela,
parecem-nos lindas e encantadoras as crianças”
Jacob e Wilhelm Grimm


O poeta tem uma cigarra dentro do peito.
Para aquela cigarra o verão é permanente.

A popular motivação cruel e irônica para com a vida cotidiana logrou, com Esopo (séc. VI a.C), o primeiro conjunto de fábulas de que se tem notícia. Destas, “A Cigarra e a Formiga” é, nos dias de hoje, a mais conhecida que já se escreveu, rivalizando-se, inclusive, com os mais famosos contos de fada.

Exposta às intempéries, com fome e frio, a Cigarra vai à casa da Formiga à procura de abrigo. Dizendo que cantara durante o verão, é despachada pela insensível e impudica Formiga que sentencia “Pois agora, dance!” Sob este epíteto à desumanidade, a Cigarra é julgada, sentenciada e executada como um súbito e lancinante golpe de sabre.

Dissequemos esta Formiga e não encontraremos sentimentos que a identifiquem com o ser humano em seu estado de eu natural, bom e compassivo. Com o material ideologismo dominando sua consciência, acabou por extraviar qualquer sentimento de nobreza, incluído o da partilha em consideração ao bem comum. Escapou-lhe o significado da vida, fugiu-lhe o espírito da dimensão humanística, faltaram-lhe, enfim, qualidades do espírito e da alma, sobrando insensibilidade, desrespeito, falta de compaixão para com a infelicidade do próximo. No depender da Formiga e seu modo de vida estático, as Cigarras já estariam extintas desde o início dos tempos. Quanto à Cigarra, possivelmente, só bateu à porta da casa da outra por alguma situação que lhe fugira ao controle. Vejamos, porém, o que aconteceu logo após aquela sinistra frase esopina:

As perninhas da Cigarra amoleceram ao ouvir aquilo, dobraram-se como num cadafalso, gerando um balanço do seu corpo que a virou de barriga para cima, atraindo a atenção da Formiga e sua ninhada. Comeram-na viva, como petisco, pelas beiradas, pedacinho a pedacinho. Acima das impiedosas cortadeiras sob a boca voraz, a Formiga pôde ver, afinal, a Cigarra “dançar”.

Do infortúnio da Cigarra, muitos podem conferir a lição do custo da imprevidência. Só os doentes psicossociais, profundamente egoístas, alinham-se com a Formiga. Mas em se pensar que tal fábula possa ser útil para uma criança é não saber nada do amor como pureza de expressão do belo, a quintessência da vida humana a ser salvaguardada.

A criança, afinal, precisa de idéias para acreditar que vencerá. Só com esperança ela pode, quando chegar a hora, ir à luta, conquistar a sua autovalorização, a sua identidade e, por fim, vencer para ser feliz. Fosse a Cigarra um exemplo disto, a fábula teria se transformado num conto de fadas.

Porque não lhe diz respeito, a criança jamais se identificará com a Formiga. Para ela, a Cigarra esopina não morreu, porque se assim fosse, ela morreria junto. Quais cigarras, muitas delas estão a chamar do lado de fora da porta de dentro de seus lares, das suas escolas, dos seus livros, encontrando apenas o vazio, o frio da solidão, do isolamento. Nestes lugares, não há espaço para sentimentos íntimos, vazão da alma, o pulsar vivo do coração, porque vivem em lugares apertados, escuros e úmidos onde pouco ou nada se vê. Ainda que alguns destes tentem abrir janelas para um pouco mais de luz, é preciso que se retire o olho eletrônico que mais espia (em distorção) do que acolhe, inclinados que estão a transmitir pensamento adulto para criança porque, eles próprios, adultos, foram criados assim, com uma consciência não integrada ao grande milagre da existência. É preciso um pouco de mágica para fazer isto. A mágica do amor. Por que acabar com o punhado desta mágica que as crianças ainda trazem à flor da pele?

É como fazem com a citada fábula de Esopo e, pior, usando-a como atrativo de venda de livros embrulhados como literatura infantil, como uma conhecida autora de livros infantis teve a infelicidade de fazer. Não convém olharmos melhor o que chega às mãos de nossas crianças como literatura infantil e, do mesmo modo, em relação a música, filmes, modismos ou, pelo menos, trazer um pouco mais de luz para a vida da criança em contraponto com o aberrante e desvirtuado mundo do consumismo em seu significado do prazer para já? É esta a Cigarra esopina?

Quarenta ou cinqüenta anos atrás, a criança brasileira tinha a consistente e profícua referência de um Monteiro Lobato que contava histórias para os corações das crianças. Recebíamo-las com a emoção de quem recebe um presente de amor. Assim, “Narizinho” era mais popular que os personagens da Disneylândia ou tão famosa como a encantadora “Chapeuzinho Vermelho”.

Com extrema delicadeza, ele contou para o nosso mundo interior que as personagens daquela fábula eram européias, onde o frio é deveras castigador, impossibilitando, por prolongados períodos, a vida comunitária. “A cigarra e as formiguinhas” do seu conto, estas sim, figuras saudavelmente tropicais, cujo amor e amizade estava na base dos relacionamentos. Pena que aqueles são tempos que se foram, pois os usos e costumes da vida moderna estão fazendo com que cada um viva só para si mesmo. Entrementes, quando, na história de Lobato, a cigarra é incomodada pelo vento sul, a doce formiguinha abre a porta de sua casa e se apressa em convidá-la a entrar, e o faz com honras meritórias a artistas.

A nossa formiguinha era emocionalmente evoluída, tocada pelo sentimento do belo, pois teve a virtude de transformar a aflição da cigarra em um bem, tanto para aquela quanto para o formigueiro que, em acolhimento a ela, transformara-se em festa. Comprazer-se em fazer o bem é, deste modo, uma delícia. Depois desta primeira formiguinha, as mal-amadas que viessem, logo seriam reconhecidas pelas crianças e ainda que intentassem invadir seus jardins, saberiam preservar o mundo do seu coração.

Lobato também teve o cuidado de aludir que cigarras são os poetas, os músicos, os pintores, pois ele próprio era uma cigarra, uma cigarra que compreendia muito bem a separação entre pensamento adulto para criança e imaginação infantil. Porque era um artista de verdade – uma formiga com alma de cigarra (ou vice-versa), idealista, portanto –, soube fazer a necessária integração daqueles personagens ao mundo infantil. Pena que seu conto sofreu, popularmente, sérias distorções.

A Cigarra, comportando-se de modo subserviente, bem ao gosto da soberania absoluta da Formiga, convence-a da importância do canto e, assim, é acolhida. A Formiga, inflexível por dois mil e seiscentos anos, deixa-se enrolar por um subterfúgio pouco convincente e mesmo piegas. Ela que nunca fez diferença entre mato ou jardim para derrubar, pôde, então, reconhecer o belo através de uma expressão artística para a qual, até o último verão, não tivera ouvidos ou coração para sentir.

Salvo Lobato, a tal fábula e demais adaptações grosseiras não se prestam para crianças. Particularmente, acredito naquilo que participa na regeneração da humanidade, onde qualidades universais são exaltadas. A fábula de Esopo desce o ser humano ao mundo dos desafetos e, especialmente para as crianças, um prejuízo de alto custo para o futuro. Os “Três Porquinhos”, “João e o pé de feijão” e outros contos de fada fazem melhor do que a citada fábula de Esopo, mas isto já é uma outra história.

Resta dizer que Sócrates via na educação “A arte de despertar as virtudes da alma”. Ensinar é sinônimo de dar (pode ser troca), e educar é, sobretudo, uma questão de generosidade. Nesta arte, os habilitados são os que amam, ou de que outro modo é possível despertar na criança a firme e habitual disposição para o bem? Só através da magia do amor é possível despertar tais virtudes, como a tolerância, o respeito, a benevolência, a amizade, a responsabilidade, a paciência, a humildade... Dar às crianças lições politicamente corretas - à moda moral de hoje - é coisa da Formiga. Ajudá-la a encontrar e percorrer os significados da vida é bem diferente. Certamente, a mais difícil e importante tarefa que um pai pode oferecer na criação de um filho, ou lição de classe da mais difícil realização para um professor. Será mesmo que queremos o desabrochar de uma sociedade mais fraterna e civilizada? Se assim é, voltemo-nos, pois, à poética da vida.

“(...) compreensão, amor, gentileza, a não agressividade, a humildade...
Essas são as armas do bem.” Dr. Celso Charuri 

Jairo Ramos Toffanetto
(Imagens extraídas da Internet)

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