Estação da Luz (Google Imagens) |
Nem me dou conta, mas o vagão do trem está quase lotado. Meus
olhos caem no piso sobre sapatinhos pretos de cadarço, formato masculino. Detenho-me
sobre curiosas meias pretas de bolinhas brancas em vertical. Subo os olhos. Pequenas
e femininas mãos cansadas se soltam sobre o colo, mas logo se cansam.
Sobre uma surrada calça preta de vinco as palmas das mãos
viram-se como o desabrochar de uma flor já exaurida, como uma oração pro alto. Os
joelhos juntos... era uma mulher, uma pequenina mulher. À frente do seu rosto
havia uma mochila de alguém agarrado ao balaustre.
Horário de verão: 14:30 h. Trinta graus lá fora. Camiseta de
vermelho desbotado e com manga até o punho, aliás, tudo o que ela vestia era de
reaproveitamento de uso.”Tadinha”, sentia eu ao pensar que talvez ela nem se
lembrasse da última peça de roupa que comprara para uso próprio.
Duas paradas adiante e vejo uma bolsa da última moda sobre o
seu colo. Certamente ela estava acompanhada, e por sua filha, pois segurava a
bolsa como se fosse a coisa mais importante da vida dela. Pensei: seria aquela
senhorinha um anjo que andava no subúrbio?
O trem segue e depois de algumas estações alguém sai de
frente da moça. Ela era grande, forte, com brilhos nos olhos e vendia beleza e
saúde - talvez uns dezoito anos de idade. Vestia-se impecavelmente como à uma
entrevista para emprego. A bolsa combinava com os demais tons em pastel que ela
vestia com descrição e elegância.
Sua perna esquerda cruzava à frente da senhorinha e o braço
direito circunda-a em descanso sobre o banco. Toda em sorrisos conversava com
alguém sentado depois da mãe, um tipo de malandro já sambado.
Ele, de compleição física semelhante à de um jogador de bola
ao certo, segurava a mão de uma outra
moça sem predicados de qualquer tipo de beleza a não ser volumosos seios e que parecia
não se importar com o que acontecia ao seu lado ou da indiferença do tal malandro
para com ela.
Estações adiante e já não havia ninguém impedindo minha
visão da senhorinha. De cabelos secos, lavados a sabonete, carregava nas mãos e
no rosto as marcas do massacre pela vida. Certamente ela teria uns vinte anos a
menos dos sessenta que aparentava.
O celular toca dentro da bolsa. Abre-a e dá o aparelho para a filha
que o desliga devolvendo para ser guardado na bolsa. Desta vez ela segura a
bolsa com as duas mãos sobre as alças. Novamente vejo-a como em oração. Apesar
das agudas e lancinantes discrepâncias, ela era, sem dúvida, a mãe da moça.
Finalmente o subúrbio chega à última estação. Desço primeiro
que eles. Quando saem do trem vejo que a namorada do malandro escafedeu-se. Do
alto da escada rolante, acompanho-o descendo de mãos dadas com a moça
e sua bolsa. E a senhorinha? Esperei, esperei, e não a vi passar.
Meus pensamentos se voltaram para o lado cruel da sociedade
humana e, de repente, na Estação da Luz me encontro com Victor Hugo. Em “Os
Miseráveis” ele cita três problemas do século XIX: “a degradação do homem pelo proletariado, a
prostituição da mulher pela fome, a atrofia da criança pela ignorância.”
Em pleno século XXI, o anjo do subúrbio era apenas uma
sobrevivente da fome, ela e a filha. A moça da bolsa era o seu maior
investimento, e suas orações se transmutaram para um extremo conflito interno. Enfim...
quanta dor...
JRToffanetto
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