sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Viva as corujas

Andando à noite pelas ruas iluminadas da cidade, deparei-me com uma área livre para o escuro da noite. Caminhando e me consubstanciando daquele oásis, cheguei próximo à margem do Rio Guapeva e ali fiquei à espera de algum incidente que me abrisse algum sentimento novo, algo a compreender a noite escura. Subitamente, eis que uma ave enorme, distando uns quatro metros de mim, passa voando à minha altura e segue percorrendo a sinuosidade do rio. Uma cena forte, impressionante, excepcional. Um vôo dominante. Uma criatura da noite oculta. Um corujão.

Uma araucária Araucaria angustifolia rivalizando a altura dos prédios ao fundo.

Ainda que eu pudesse ficar esperando a volta daquela ave noturna pelo tempo que fosse, senti que nada mais tinha a fazer senão carregar o sentimento que se imprimira em meu peito. Não se ouvia nenhum grilo contador de estrelas, um coaxar de rã, não havia nenhum pirilampo, todos eles esmagados pela cidade grande. Talvez pela falta deles - o vazio - foi o que me permitiu abrir os sentidos para uma emoção tão intensa como foi. O corujão ainda voa por aquele rio dentro de mim. Eu voltaria à luz do dia para estrear minha nova máquina fotográfica esquecida na cinta.  


Pela manhã, de máquina em punho, aproximava-me daquele local sentindo a cidade muito densa, extressada, exausta de seus quase quatrocentos anos de vida. Seria a falta do brilho do sol? Suas construções se apresentavam insólitas, esmagadoras, excepcionalmente cruenta para a vida nativa, oponente ao despredimento do lúdico, à vida hilariante. Este sentimento me remeteu ao vôo da coruja. Peguntei-me: O que ela caçava? Ratos?

Em alcance daquele lugar qual sonho noturno, sentia o trânsito da avenida Dr. Cavalcanti passando pesado, ruidoso, temerário. Tantos carros e ônibus rodando, rondando, ruidando... iam atrás do que, ratos? Fiquei a olhar as pessoas passando apressadas. Elas tinham - mesmo - aonde ir? Os rostos imóveis, olhos fixos, muitos deles voltados para o chão. O que caçavam? Ratos?


Cheguei e fui avançando para a margem o rio. Já nos primeiros passos, um joão-de-barro assentou vôo no chão. Reparei que ali haviam tico-ticos, pássaros preto, pardais e outros mais. Cantavam soando alegria, entusiasmo pelo dia, o estado de graça, a delicadeza da vida. Um osásis no meio da selva de blocos e concreto armado. Um templo sagrado. A vida sagrada.

João-de-barro
Olhei para o novos espigões (primeira foto acima) em construção no bairro vilarense. Ficaram bonitos na foto, entrementes, avultavam-se extremamente assustadores. Novas necessidades das gentes só farão abreviar o tempo daquele templo silvestre. Logo os tratores virão passando por cima daquilo tudo, as margens do rio serão cobertas de piche, e o lençol fluvial trocado por um cimentão tumular para escorrer o rio numa calha de esgoto.

E os passarinhos? Oras os passarinhos... Eles que vão cantar noutro lugar. O mundo é da formiga, da gente saúva. Queremos as cigarras voando pra longe daqui, aliás, temos horripilência dessas coisas brejeiras. É o que diz o homem com voz de britadeira e hálito de monóxido de carbono, os guardiões da razão, os papa-defuntos, os faltantes da vergonha. E parafraseando a letra da canção de Milton "Queremos a morte, não queremos a vida não".
  
Observe a portinha. Existem várias delas sob a horizontal verde. São porões que restaram da demolição do antigo "Lacticínios Jundiaí". Inúmeras famílias se abrigam ali cheirando o rio, outras também cheiram cola de sapateiro.
Mas... o que é que estamos fazendo com nós? Estrelando como personagens de uma ficção de extremo terror? Somos mais temerários do que nos mete medo. O que somos, a prefiguração da morte? Nossas canetas são cajados, nossos lápis são punhais, adagas, espadas, e nossas mentes um lixo.

Coitado do Rio Guapeva. Coitado deste homem sem íris, sem pupila, sem cílios nas pálpebras. Olho branco, olho vidrado por dinheiro e poder. É o fim do mundo (puro, em grego), é o "afim do imundo". Quanto a mim, não sou sectário desta porcaria que aí está. Viva as corujas, viva o mundo, viva o chico barrigudo.

Jairo Ramos Toffanetto

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