(...) Consideremos, pois, um momento o homem isolado... Quem me explique pelo raciocínio em que consiste a grande superioridade que pretende ter sobre as demais criaturas. Quem o autoriza a pensar que o movimento admirádavel da abóbada celeste, a aluz eterna dessas tochas brilhando majestosamente sobre sua cabeça, as flutuações comoventes do mar de horizontes infinitos, foram criados e continuem a existir unicamente para sua comodidade e serviço?
Será possível imaginar algo mais ridículo do que essa miserável criatura, que nem sequer é dona de si mesma, que está exposta a todos os desastres e se proclma senhora do universo? Se não lhe pode conhecer ao menos uma pequena parcela, como há de dirigir o todo? Quem lhe outorgou o privilégio que se arroga de ser o único capaz, neste vasto edifício, de lhe apreciar a beleza?
Que faculdade teremos ainda que não encontremos nos animais?
...As andorinhas que, na primavera, vemos esquadrinharem os recantos todos de uma casa, escolherão por acaso sem discernimeto e ponderação o mais cômodo dentre mil lugares? Quando constroem seus ninhos, tão admiráveis pela contextura, podem os pássaros adotar a forma quadrada ou redonda, o ângulo obtuso ou reto, sem conhecimento da condições e efeitos de cada uma dessas formas? Ao misturarem a água com a argila, ignorarão que aquela amolece esta? Atapetando seus palácios de musgo ou de plumas, não estarão prevendo a conveniência da moleza para os membros delicados dos filhores? Será que se resguardam do vento e da chuva e instalam seus ninhos voltados para o oriente sem conhecerem as condições climáticas e atentarem para as mais favoráveis? Por que faz a aranha sua teia mais espessa em certos lugares e por que a tece diferentemente, ora de um jeito ora de outro, se antes não pensou, e decidiu?
Pegada humana em solo lunar |
...Assim a estupidez deles seria mais admirável do que a nossa divina inteligência! Teríamos portanto motivo de sobra para considerar a natureza uma injusta madrasta. Entretanto erraríamos, porquanto nossa maneira de ser não é tão desordenada nem absurda.
(...)
Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592). Escritor e ensaista francês, considerado por muitos como o inventor do ensaio pessoal. Nas suas obras e, mais especificamente nos seus "Ensaios", analisou as instituições, as opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os dogmas da sua época e tomando a generalidade da humanidade como objeto de estudo. É considerado um cético e humanista.
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